O som das palavras
Lemos estes versos pela primeira vez de cálice de porto na mão, enquanto o autor discorria sobre poesia polaca do século XX com um amigo comum… ouviam-se os Rückert Lieder…
um dia encontrarás o amor onde ele não te encontre mais
subirás as escadas fantasmas da posse
as frases murmurando contra o sol
e o doce ranger dos corpos vai cortar-te os dias
passarás pelo fogo das palavras mentidas
pelos versos densamente habitados pelos teus gestos
a ausência de ti mesmo calará os teus passos
como se entrasses no amor
por uma porta assassinada
verás os selos do coração
um a um desfeito pelo clarão
verás o teu nome medido em sílabas de pânico
correndo do medo para a luz
pássaros de bruma trarão noites inteiras
o sabor cru dos peitos esmagados pela ausência
o som a fogo interior de tão imaginado
e mandarás na memória como numa dor intrusa
com as duas mãos do desejo tocarás no fim
tão frio como se o impossível te tivesse os braços
preso a onde foste mais que um corpo
e o seu peso inteiro em sonho
ouvirás o som das multidões do sangue
os sítiosperdidos de tão idos
as noites que doeram por se abraçar
e quando ouvires as palavras suspensas
que guardam o coração do tempo
tão reais como o sangue as dependesse
quando caminhares na dor como um chão
estarás de pé na morte onde te vejo
na cal viva das paredes dos ossos
o teu braço chegará a mim
como um rio acordado de frio
e mãe a angústia vai separar-te de mim
nesse dia perdido em todos os minutos do mundo
em que as coisas sejam renovadamente mortas
encontrarei o amor onde ele não me encontre mais.
in Pedro Sena-Lino, zona de perda, livro de albas*
*antiga composição poética destinada a ser cantada à alvorada;
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