Gazeta Musical

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domingo, dezembro 31, 2006

Mendelssohn e Mozart na Gulbenkian

Quinta-feira, dia 22 de Dezembro, tivemos oportunidade de ouvir duas obras maiores do repertório coral, o salmo 42 de Felix Mendelssohn e a Missa em Dó menor de W.A.Mozart, com o Coro e Orquestra Gulbenkian, sob direcção do Maestro Michel Corboz, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian.
Como Teresa Cascudo afirma, e bem, nas notas de programa deste concerto, ambas obras têm em comum o facto de terem sido compostas, em parte, para as respectivas mulheres dos compositores, Cécile Jeanrenaud e Constanze Weber, pouco depois dos seus casamentos. Mas as semelhanças ficam-se por este facto colateral… são dois universos sonoros diferentes, mesmo tendo em conta a vénia profunda que ambos os compositores fazem aos mestres do passado, concretamente J.S.Bach e G.F.Händel.

Na primeira parte do concerto, o salmo 42 de Mendelssohn, a direcção de Michel Corboz foi desapaixonada, dir-se-ia, resignada. Não ouve um único momento arrebatador, antes um debitar de notas perigosamente perto do enfadonho. O coro, constituído por 88 figuras, pautou-se por uma emissão morna, sem qualquer atenção à prosódia do texto, consoantes débeis, e uma sonoridade pouco brilhante. A orquestra pareceu-nos perdida no imenso contraponto instrumental, sem linha, sem tensão, sem génio. Quanto a Ana Quintans, o soprano solista, foi, evidentemente, um erro de casting. O seu belíssimo timbre não se coadunou com a densidade dramática requerida, chegando a desaparecer vocalmente sob a intensidade da teia orquestral. Frases fundamentais, como Mein Gott, betrübt ist meine Seele in mir [Meus Deus, dentro de mim a minha alma está triste!] foram proferidas displicentemente, sem qualquer emotividade.
Logo no primeiro número, Wie der Hirsch schreit, tivemos uma batuta instável, nem adagio, nem andante, sem qualquer tensão no arco melódico, e sem qualquer nuance dinâmica, cinco longos minutos de mf (meio-forte). Os sopros pareciam desarticulados entre si, em particular os oboés e as trompas, elementos timbricos fundamentais neste número.
Na ária Meine Seele, o solo de oboé de Alice Caplow-Sparks, a nova 1º solista auxiliar da orquestra, foi correcto, mas sem a elegância que o texto musical naturalmente convida.
No quinteto masculino, Der Herr hat des Tages, de uma fragilidade mágica, Corboz optou por fazer uso da totalidade dos naipes masculinos (41v.), desvirtuando por completo a prosódia musical!
No número final, Was betrübst du dich, meine Seele, e numa reviravolta assaz bem vinda, o ambiente geral transformou-se. A mensagem de esperança e afirmação de Fé, daβ er meines Angesichts Hilfe und mein Gott ist [porque ele é a salvação da minha face e o meu Deus], teve eco na prestação dos músicos. As linhas melódicas foram bem lançadas, a prosódia claríssima, os naipes do coro bem timbrados, e correctamente dobrados pelos metais e o contraponto nas cordas bem diferenciado. Apesar da instabilidade rítmica inicial da fuga Preis sei dem Herrn, terminou o salmo de Mendelssohn num brilhantismo até então inédito. Não se compreende a ausência do órgão ao longo de toda a obra… facto que muito lamentamos!
Quanto à Missa em Dó menor de Mozart, a segunda parte do concerto, padeceu de diversos males. Para além da já notada ausência do órgão, o efectivo instrumental utilizado foi muito superior ao imanente à partitura. Mesmo tendo em conta o seu carácter monumental, as passagens brilhantíssimas dos metais, e os 60 coralistas, o uso de 24 violinos pareceu-nos demais, com implicações notórias na sua emissão sonora, em particular, na articulação das linhas melódicas nas árias.
O Kyrie foi, em boa verdade, a passagem mais equilibrada de todo o concerto. Todo o contraponto esteve perceptível, as dinâmicas seguras e apenas a frase de introdução ao solo do soprano, pelos violinos, pecou pelo legato. Ana Quintans brilhou em todo o seu esplendor vocal. Ao controlo perfeito da respiração juntou-se uma elegância musical muito eficaz.
O segundo soprano, Katalin Halmai, foi excepcional no Laudamus Te. De voz bastante encorpada, riquíssima em harmónicos, brindou-nos com uma coloratura esfuziante, e uma paleta de dinâmicas assaz curiosa. Nas notas mais longas, e para evitar um vibrato estilisticamente incorrecto, apianou o possível, sendo de notar a riqueza do seu registo grave. De destacar, ainda, a correcção do diálogo entre o soprano e oboé.
O Qui tollis, para duplo coro, enfermou de vários males. Uma batuta instável, quase a roçar o rubato, não permitiu criar o pano de fundo necessário ao bom desempenho do coro. Uma textura mais pesante por parte da orquestra teria sido bem vinda, mas é meramente uma opinião pessoal. Quanto ao coro, eficaz do ponto de vista dinâmico, os pianíssimos súbitos foram excepcionais e os fortes bastante focados, apresentou falhas graves do ponto de vista timbrico, particularmente nos tenores II.
Corboz optou por um ambiente contido na fuga Cum Sancto Spiritu, numa tentativa de transparência contrapontística que teria sido amplamente conseguida não fora as diferentes articulações que os quatro naipes e a orquestra conferiram ao tema. De lamentar que o contra-tema das cordas, no stretto final, não tenha estado mais em evidência.
No Et incarnatus est, verdadeiro tour de force, Ana Quintans ressentiu-se, mais pela sua juventude do que pela sua arte. A falta de tarimba foi compensada pelo seu belíssimo timbre vocal, de uma frescura encantatória e de um registo agudo excepcional. Não podemos deixar passar, contudo, um tique que, a manter-se, poderá, com os anos, revelar-se fatal, referimo-nos à tendência de Ana Quintans de apanhar as notas mais agudas por baixo, como foi evidente no dó e si sobre-agudos. Tudo isto não eclipsa, de forma alguma, a prestação elevadíssima da cantora.
No Sanctus, os sopros revelaram, mais uma vez, falta de coesão. Perguntamo-nos se, em abono da verdade, este desacerto constante não terá sido fruto de um gesto menos enfático de Corboz. No Hossana, o coro esteve ao seu mais alto nível, apresentando o tecido contrapontístico de forma clara e uma coloratura elegantíssima.
Após uma introdução orquestral bem lançada, começou o Benedictus com o aprumo vocal das duas cantoras solistas. Apesar da sua natureza vocal assaz diferente, Ana Quintans e Katalin Halmai mantiveram, ao longo de tudo o número, uma coesão musical bastante eficaz. Infelizmente, quer o tenor Jan Kobow, quer o baixo João Fernandes, deixaram muito a desejar, com vozes enguladas, sem qualquer brilho, numa emissão pouco convincente e, em alguns momentos, quase inaudível. O espanto é maior no caso de João Fernandes, cujo belo timbre tivemos oportunidade de escutar no passado, mas completamente desfigurado no concerto em apreciação. Além disso, achamos de mau tom que um cantor se apresente como “uma glória nascente da cena Internacional”. É um comentário por demais desnecessário…
Foi, em suma, um concerto desigual e pouco apaixonante. Esperáva-mos mais…

10 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Uma crítica exaustiva e implacável que termina, curiosamente cheia de pudor, com um pseudónimo!...
Não comento o conteúdo mas gostava de retribuir o conselho (para uma falha que também ela "poderá revelar-se fatal no futuro"): há que ter a frontalidade também, ou pelo menos, para assinar o que escrevem.
Ana Quintans

10:29 da tarde  
Blogger Nós said...

Muito nos apraz constatar que leu a crítica. Não achamos que a crítica que aqui deixámos seja exaustiva e muito menos implacável. Foi a nossa visão do concerto, sendo que, obviamente, redunda numa leitura assaz pessoal e altamente discutível.
Relativamente ao seu comentário, convém esclarecer que não nos arrogamos/arrogámos ao direito de dar conselhos a ninguém, muito menos a cantores da sua craveira. Presumimos, assim, que a citação do nosso texto venha no seguimento de um mal entendido.
Esta crítica é o resultado das observações de algumas pessoas, daí o Nós. Além do mais, este blogue não pretende ser uma feira de vaidades, um exercício de "vanitas", um "name dropping" onde se enumeram os conhecimentos, os contactos, as extensas discografias, etc. Assinar seria desvirtuar algo que não pretende ser um "personal statement".
Além do mais, somos apologistas de uma critica directa, e não implacável, como diz, e acima de tudo construtiva. Não nos comprazemos na crítica destrutiva, pessoalíssima e a destilar veneno à distância. O nosso enorme respeito pelos Músicos e pela Música assim o exige.

1:07 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Agradeço sinceramente a vossa resposta mas não concordo no essencial: assinar uma crítica não será nunca um exercício de vaidade, até porque, e cito-vos mais uma vez - o respeito pelos Músicos e pela Música (e já agora -pelos vossos leitores) assim o exige.
Ana Quintans

12:07 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Só em Portugal é que um solista pede satisfações a um critico (ou críticos, pouco importa)e este ainda lhe responde. Haja um pingo de inteligência!!!!!

1:17 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

o soprano ana quintans, se quer ser uma cantora a sério, nao tendo nem técnica nem fibra, deve pelo menos ter noção do que é conveniente e razoável.
mas defendo, a voz é lindissima.
estudar, é preciso estudar muito. se todos os grandes insistem no mesmo, vão os pigmeus insistir no contrário?...

9:22 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Que vegonha meus senhores. Não querem um "personal statement" e assim escondem-se num anónimo "Nós". Nâo comentem mais pois fica-vos muito mal.
Carlos Semedo

3:55 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

I was looking on the web for Ana Quintans website when I found this blog.
So, anonymous critics. Anonymous critics cannot be taken seriously. You know who I am. I give my name each time I write. I stand by what I have said and I urge others to show the same strength of conviction. It’s time for you to come out of the bushes. If you can’t bring yourselves to do that, it’s time to take a look at the heart issues that prevent you from standing behind your beliefs.
Sophie Dartemare

4:12 da tarde  
Blogger Nós said...

Caríssimos leitores identificados e demais anónimos...

É curiosíssimo, para não dizer assaz duvidoso que, de repente, esta crítica tenha sido alvo de diversos comentários! Não nos compete fazer qualquer tipo de especulações sobre esse mesmo facto MAS, e para que não restem dúvidas, o que está dito, dito está! Não alteramos uma vírgula ao nosso texto sobre o concerto do passado dia 22 de Dezembro! Foi escrito com a máxima isenção, procurando discorrer sobre o que de bom e menos bom ocorreu nesse concerto! O mesmo não poderemos dizer dos comentários que nos antecedem. Pelos vistos, a cantora Ana Quintans desperta sentimentos opostos, facto que nos ULTRAPASSA por completo! Acreditamos que Quintans é um valor emergente da vida musical europeia, e com uma auspiciosa carreira pela frente. Contudo, é-nos por demais INDIFERENTE que este simples facto seja motivo de regozijo de uns e desprezo de outros.
Uma última palavra aos senhores Carlos Semedo e Sophie Dartemare (respondo-lhe em português porque presumo que, apesar de ter feito o seu comentário em inglês, leia o idioma de Camões): a crítica é sobre um concerto em que intervieram, para além de Ana Quintans, três outros solistas, coro e orquestra Gulbenkian e Michel Corboz. Por ventura estiveram no concerto em questão? Se o único comentário que fazem à nossa critica se resume ao facto de esta ser ultrajante por estar assinada sob pseudónimo (questão que, oportunamente, esclarecemos) resta-nos, infelizmente, concluir que a natureza do vosso comentário é fruto de uma leitura néscia da nossa crítica.

3:12 da manhã  
Blogger TMT said...

É com alegria e emoção que observo esta pequena querela. Gostaria de referir que assisti (atentamente) ao concerto de 21 de Dezembro de 2006, e a minha ‘humilde’ opinião é um pouco diferente. Relativamente ao Maestro Michel Corboz nem me atrevo a comentar, apenas me curvo perante a sua autoridade e mestria musical.
Relativamente à soprano Ana Quintans fico muito entusiasmado com a polémica, o seu potencial para despertar emoções é enorme. Que prossiga em frente porque vai despertar cada vez mais emoções e polémicas (é a sina dos poucos artistas bafejados pelo talento). Foi a primeira vez que tive o privilégio de a ouvir e a surpresa não podia ser melhor quer a nível da qualidade da voz como a nível artístico e ainda está no início da carreira!

Tiago Miravent

11:34 da manhã  
Blogger wirdung said...

Caro Tiago
É precisamente a diversidade de opiniões que faz este mundo girar. Queira crer que o seu comentário foi muito bem vindo. Também acho que Ana Quintas é uma cantora de grande nível e que, obviamente, no futuro, dará muito que falar. Custa-me, como colaborador deste blogue, que esta crítica tenha despertado comentários menos próprios até porque, em boa verdade, não é ofensiva para ninguém.

6:53 da tarde  

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