Gazeta Musical

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terça-feira, outubro 17, 2006

MOZART A BANHOS I



Ao contrário do que por aí se diz, consideramo-nos tolerantes. Mas há limites imperativos para o benefício da dúvida relativo às fraudes que por este país grassam como ervas daninhas e que, teimosamente, tardam a ser extirpadas deste jardim á beira mar plantado! Há ideias, projectos, meios humanos capazes de levar avante tudo isto mas, depois, algo falha e a dignidade esvai-se por entre os dedos.
O Festival Rota dos Monumentos é um exemplo acabado do que acima dissemos. A divulgação musical em espaços históricos, ideia central deste projecto, é interessantíssima, do nosso ponto de vista, não só como motor de reanimação de espaços que carecem de visitantes mas também como pretexto para levar a música clássica a um público generalista.
Mas este público generalista não é assim tão burro como por vezes gostamos de pensar. E não são raras as vezes em que se sentem defraudados, protelando para uma próxima encarnação o regresso a um espectáculo de música clássica. Outros há, claro, que batem palmas desenfreadamente, como se disso dependesse a sua própria aceitação…
Ficámos desapontados, no passado dia 1 de Setembro, ao assistir à única récita da ópera Flauta Mágica de W.A.Mozart, promovida pelo citado Festival na Cidadela de Cascais.
O descalabro começou logo à porta, com um programa de sala que se resumia a nada a um preço de encadernação de luxo. O espaço onde decorreu o espectáculo era um meio termo entre a tenda para casamentos e as comemorações presidenciais do 5 de Outubro… chão alcatifado, cadeiras douradas com almofadas, um pavor, portanto!
A concepção do espectáculo, de Tito Celestino da Costa, parecia-nos atractiva. Mas cedo nos apercebemos da insipidez de toda a encenação. A alternância entre cantores em palco e marionetas foi mal conseguida, as marionetas eram de uma pobreza pueril, para já não falar da forma paquidermica como foram movimentadas, sem a menor atenção ou sensibilidade à música de Mozart. Os diálogos foram substituídos por um texto narrativo, em português, de forma a contextualizar a acção dramática, mas esqueceram-se de dizer à actriz que lia o texto que Pagageno, não se lê Pagajeno, e outras pérolas afins… Não fora as belíssimas aguarelas de Celestino da Costa como fundos de cena e teríamos optado por assistir à totalidade do espectáculo de olhos fechados!
De todo elenco destacamos dois cantores, Keel Watson e Raquel Alão .
Com uma sólida carreira, predominantemente em palcos ingleses, Keel Watson apresentou-nos um Sarastro excepcional. De voz encorpadíssima, se bem que menos luxuriante nas notas graves, Watson irradiou musicalidade, procurando a cada momento caracterizar o seu personagem á falta de movimentação cénica. Raiou a genialidade em In diesen heil’gen Hallen no II acto. A boa impressão que nos causara em São Carlos, como Fasolt na recente produção do Das Rheingold foi em muito suplantada.
A grande surpresa da noite foi Raquel Alão no papel de Rainha da Noite. Depois de breve incursão pelo mundo da música ligeira, esta portuguesa de 28 anos mostrou-se como um talento em ascensão. Na introdução da ária O zittre nicht, mein lieber Sohn foi pouco convincente do ponto de vista emotivo, mas correctíssima no que toca ao fraseio e ás exigentes mudanças de registo vocal. Já na segunda parte da ária, o verdadeiro animal vocal soltou-se, brindando a audiência com uma coloratura esfusiante e um registo sobre-agudo consistente. A falta de tonus dramaticus voltou a verificar-se na segunda ária Der Holle Rache, e alguma inconsistência do registo médio-grave ficou a descoberto mas, mais uma vez, o lirismo da voz deu azo a um longo e merecidíssimo aplauso!
O inglês Richard-Edgar Wilson não convenceu como Tamino. De carreira feita, essencialmente no domínio do Lieder, Wilson esteve longe de conferir ao seu personagem a nobreza vocal que este papel exige. O fraseado foi correcto, a prosódia perceptível, mas nada mais…
A jovem Pamina, Donna Bateman, foi, sobre diversos aspectos, duvidosa. De voz demasiado encorpada, com um vibrato assaz irritante, não soube lidar com os cambiantes emocionais deste personagem. Resta, contudo, dizer que o seu Ach, ich fühl’s foi correctíssimo, mas apenas e só, se entendido numa récita de árias soltas, e nunca como ária fundamental desta ópera.
Quanto à prestação de Mark Evans, no papel de Papagueno, ficou aquém do que seria esperado. A voz é consistente, os agudos são bem focados, mas por qualquer razão que nos ultrapassa, a emissão gutural reinou ao longo da récita, para já não referir a verdadeira “trapalhada” que foi o seu alemão.
A portuguesa Ana Ferraz foi, há semelhança do que tem vindo a ser hábito em palcos nacionais, uma Papaguena charmosa, com a sua voz cristalina, de timbre muito próprio que, pessoalmente, muito apreciamos. Contudo, há que lamentar o desacerto rítmico entre os dois cantores e a orquestra no dueto final.
Sónia Alcobaça, Luísa Tavares e Susana Teixeira desempenharam com grande rigor o seu papel como Damas da Rainha da Noite, conferindo-lhes a dignidade musical exigida. Ainda Ana Ferraz, Susana Duarte e Inês Madeira, no papel dos Três Rapazes, três timbres diferentes, mas inteligentemente fundidos numa inocência vocal eficaz e, do ponto de vista dramático, consistente.
O coro masculino, de doze figuras, foi correcto nas suas participações, se bem que o naipe dos tenores apresentou algumas dificuldades de fusão, concretamente no coro O Isis und Osiris.
A Orquestra Viandante da Europa, nome pomposo para uma amálgama de instrumentistas, impressionou pela falta de tacto musical. Salvo raríssimas excepções, todos tocaram forte e feio, com desafinações escandalosas nos naipes dos violinos, sem qualquer respeito pelo contraponto delicado e pela retórica musical do texto musical.
Por fim, uma observação sobre o maestro Jean-Bernard Pommier, detentor de um curriculum impressionante onde nomes como Karajan, Haitink, Boulez, Muti, Masur, Mehta e Barenboim saltam á vista. Se tinha alguma ideia, ou concepção musical, do que estava ali a fazer, não a soube transmitir…

1 Comments:

Blogger Blues said...

A qualidade dos espectáculos deste "festival" é algo limitada pelo facto de a TCC não pagar aos fornecedores, técnicos e até alguns músicos desde 2004. A consequência óbvia é que os profissionais mais capazes se recusam a trabalhar com eles, e o resultado está à vista. Se alguma vez tiverem de trabalhar com este vigarista, exijam pagamento adiantado!

4:52 da tarde  

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