Gazeta Musical

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quinta-feira, abril 20, 2006

Disparates II

O Rei D. João V, grande melómano, homem culto e requintado, restitui à corte portuguesa de italianismo; Domenico Scarlatti, Carlos Seixas e também Antonio Soler e Francisco Almeida, beneficiaram da fecunda efervescência musical que caracterizou o seu reinado.

O rei D. João V pode ter feito muito pela música em Portugal (criação do Seminário da Patriarcal e do Seminário de Santa Catarina de Ribamar; a contratação maciça de músicos estrangeiros para a Capela Real, Real Câmara e para a Charamela Real; atribuição de bolsas de estudo, etc.) mas está longe de ter sido um melómano. Para o Magnânimo a música era mais um dos diversos instrumentos que tinha à sua disposição para o engrandecimento da coroa portuguesa. Todo o aparelho musical da corte joanina estava ao serviço do Estado e não do gosto particular do rei. Era sem dúvida um homem culto, requintado, e com uma visão precisa do que queria para o País, para o Estado, para a Nação. Foi um espírito incompreendido, decidido a relançar Portugal na Europa, mas de forma assaz peculiar.
Como é possível alguém restituir algo que nunca existiu? A corte portuguesa sofreu influências inglesa, flamenga, castelhana, mas nunca italiana! D. João V introduziu hábitos franceses na corte, para grande escândalo e oposição dos cortesãos, e, quanto muito, romanos, porque é de Roma que se trata. Roma é o modelo a seguir, não a generalidade da península itálica. Além disso, vários autores falam da inexistência de uma verdadeira corte portuguesa, pelo menos, nos modos "versalhescos" que dominam o status quo cortesão europeu. Mas até este ponto, enfim, ainda vai… agora dizer que Scarlatti, Seixas, Almeida, e milagre dos milagres, Soler, beneficiaram da fecunda efervescência musical que caracterizou o seu reinado, dá direito ao pelourinho!
Comecemos por Scarlatti. Tendo aceite o cargo de Compositor Real e Mestre dos Infantes, Scarlatti teve como incumbência principal organizar o corpus de músicos recém-chegados a Portugal, por forma à Capela Patriarcal joanina poder rivalizar com a Capela Pontifícia. Paralelamente, estava incumbido de ensinar cravo à Sereníssima Infanta D. Maria Bárbara e ao seu tio, o Infante D. António. Tendo em conta que Scarlatti viveu em Portugal pouco menos que 10 anos, entre 1719 e 1729, sendo que grande parte deste tempo passou-o a viajar, segundo João Pedro d’Alvarenga, entre Itália, França e Inglaterra, ficamos tentados a afirmar que Scarlatti beneficiou, antes de mais, da fecunda efervescência monetária que caracterizou o reinado joanino.
Se Francisco de Almeida nada tinha a aprender em Portugal, como o prova genialmente a sua oratóra La Giuditta, composta em Roma c.1726, Carlos Seixas foi quem realmente usufruiu plenamente da babilónia de músicos estrangeiros chegados a Portugal por incumbência régia.
Por fim, o magno disparate! Nascido em Gerona a 3 de Dezembro de 1729, Antonio Soler viveu toda a sua vida em Espanha, primeiro em Montserrat, como menino de coro, depois como mestre de capela da Catedral de Lérida, e a partir de 1752, como frade jerónimo no Mosteiro de São Lourenço do Escurial, sendo nomeado mestre de capela em 1757, cargo que ocupou até à sua morte, a 20 de Dezembro de 1783. A sua virtuosidade ao órgão e ao cravo valeu-lhe a protecção de D. Maria Bárbara, tendo estudado com Domenico Scarlatti e José de Nebra (1702-1768), vice-mestre da capela real. O seu discípulo dilecto foi o infante Gabriel de Bourbon, a quem dedicou diversas obras para tecla e seis quintetos de cordas e cravo.
Se alguém tiver a gentileza de nos explicar como é que este insigne compositor teve oportunidade de beneficiar da efervescência musical joanina, agradecemos desde já, porque não nos ocorre nenhuma explicação plausível!