Gazeta Musical

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quarta-feira, abril 26, 2006

Disparates III

Et bient, um disparate nunca vem só! Qual não foi o nosso espanto quando, ao folhear diversos programas de sala da Festa da Música, encontrámos verdadeiras aberrações nas biografiazinhas dos compositores, para já não falar do resto [andamentos trocados, árias e recitativos invertidos, traduções altamente dúbias, etc.]. Revesitemos, pois, algumas dessas pérolas...

1) No programa de sala do concerto 21 e do concerto 50 vem a seguinte nota biográfica:
Com o século XVIII, mais precisamente com o casamento de D.João V com a princesa Maria Ana, filha do imperador Leopoldo I da Áustria, tem inicio na música portuguesa o chamada “período italiano”.

Todo este primeiro período está erradíssimo! As influências italianas, na música portuguesa datam, pelo menos, da segunda metade do século XVII. Tais influências são bem patentes em obras de João Lourenço Rebelo (1610-1661), Diogo Melgaz (1638-1700) ou ainda, mas em menor grau, Francisco Martins (c.1617-1682). Mais uma vez, a questão do italianismo não se coloca, mas sim, quanto muito, do romanismo e mesmo assim, é muito discutível. O casamento de D. João V com a princesa Maria Ana de Áustria [já agora é “de Áustria” e não “da Áustria” como está escrito] não teve a mínima influência nas opções estéticas tomadas pelo rei.

2) No programa de sala do concerto 50 vem a seguinte nota biográfica:
Sucessor do rei D. João IV […], o Rei D. João V […] E foi neste contexto que Domenico Scarlatti, que vivia na península desde 1719, granjeou muitos alunos, entre os quais […] Carlos Seixas. Embora se inspirasse em Scarlatti, Carlos Seixas […]

Dizer que D. João V foi o sucessor de D. João IV é de almanaque! A D. João IV sucedeu o seu filho D. Afonso VI, destronado do trono por seu irmão, D. Pedro II, por sua vez, pai de D. João V.Que se saiba, Domenico Scarlatti vivia em Lisboa, em 1719. Lisboa é na península ibérica, mas nem a isso fazem alusão. Podia ser a península itálica, a península dinamarquesa, até a de Tróia! Além disso, que se saiba, para além dos infantes, Scarlatti não teve qualquer aluno, muito menos Carlos Seixas. Esse mito foi resolvido há, pelo menos, duas décadas atrás. Além disso, Carlos Seixas não se inspira em Scarlatti, são bastante diferentes quer do ponto vista da estrutura das sonatas, quer no discurso melódico. Mais um mito que caiu há muito.


P.S. Lemos algures por aí que um crítico achou, e passo a citar, “Boatos não fundamentados sobre o vício de jogo de D. Scarlatti dados como certos nas notas de programa” um tremendo disparate. E como não bastasse, ainda chama a coacção Pierre Hantaï, personagem com quem debateu o assunto… Sugerimos a leitura atenta quer da correspondência entre a embaixada de Portugal em França e a chancelaria régia, quer do testamento da rainha Maria Bárbara de Espanha, antes de se pronunciar tão categoricamente sobre o assunto. O nosso imenso respeito por Domenico Scarlatti não diminuiu perante tais “boatos”, a natureza humana tem destas coisas… compensadas à partida por sonatas como a k.87, k.118 ou a k.383.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Queria cumprimentar-vos pelo trabalho de qualidade e sério que começaram. Efectivamente, falta muitas vezes a concepção de que o acto musical é dinâmico, e não se reduz à interpretação o mais "correcta" possível de formas já estabelecidas (com todo o respeito pelo estilo e pelo conteúdo do texto musical).
Uma coisa irritou-me neste post, que é mais evidente aqui que nos outros (mas está presente em todos). Quem lê percebe imediatamente que o vosso blogue é feito em reacção (senão quase em resposta) ao blogue do Sr. Henrique Silveira. Porque não assumir isso abertamente, quando for o caso? Porquê dizer "um crítico", e não colocar um link directo, uma vez que a referência é bastante clara? Sinceramente, paninhos quentes já há muitos. Uma vez que vocês assumem (e bem) uma posição, mais vale abrir o diálogo. Meia palavra não basta, neste caso.

11:43 da manhã  
Blogger Nós said...

Caríssimo João Miguel Pais

Acredite que este blogue não foi feito em reacção, ou mesmo em resposta, ao blogue do Sr. Henrique Silveira. O próprio nome do blogue assim o atesta. A única alusão ao Sr. supra citado é, realmente, este post. E se o fazemos indirectamente é por uma questão de educação, coisa que, como convirá, por vezes falta na "blogosfera". Ao contrário do Sr. Henrique Silveira, acreditamos na diversidade, e não gostamos de impor o nosso ponto de vista, o nosso exercício intelectual como verdade absoluta. Não nos compraz citar nomes, nem elaborar listas negras, nem mesmo atacar seja quem for [se bem que por vezes bem nos apeteça...]. Aliás, ao contrário do blogue em questão, permitimos que os leitores deixem comentários, o que, permita-nos a imodéstia, só revela consciência tranquila e acima de tudo, estarmos atentos ao juízo dos leitores sobre aquilo que escrevemos.
A ideia deste blogue foi-nos dada por uma amiga que, em conversa, nos perguntava sobre críticos musicais ao longo dos séculos e se o que eles tinham escrito se coadunava com a actual crítica musical. Mais do que crítica, procuramos reflectir sobre o que se faz da música em Portugal. E claro está, todos os "fait-divers" associados.
Esperamos, sinceramente, que no futuro possamos contar com a sua participação neste blogue, concretamente, no dominio da música contemporânea... se assim o desejar, obviamente.

11:23 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

As minhas palavras não foram bem colocadas quando falei de "reacção", não queria dizer que seria a única (ou mesmo a principal) linha do blogue. Apenas que se nota em mais que um poste, independentemente de ser mais ou menos directo. Cada um tem o direito de expor os seus argumentos livremente. Mas assumindo as conclusões chega-se mais depressa (e com menos atrito) a uma posição comum, a um diálogo - espero eu - salutar.
Quanto ao outro assunto, talvez fosse melhor discutir directamente. O meu endereço actual está no link.

9:21 da manhã  
Blogger Nós said...

Não conseguimos ver qualquer link, pelo que agradecemos que entre em contacto via o nosso mail:
gazetamusicalportugal@yahoo.com.br

2:36 da tarde  

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