Sábado, dia 8 de Abril, tivemos oportunidade de ouvir a Paixão Segundo São Mateus de J.S.Bach, com o Coro e Orquestra Gulbenkian, sob direcção do Maestro Michel Corboz no último de 3 concertos realizados no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian.
Há anos que os académicos discorrem sobre a forma correcta de interpretar esta obra magna do
Kantor de Leipzig. Uns, defendem o uso de vozes brancas, outros, o de um músico por parte, outros apenas um pequeno ensemble vocal e instrumental… e a Música? É verdade que, em termos epistemológicos, valoriza-se uma sociedade com consciência do passado, um sentido historicista que lhe permita entender o presente. Mas, se o discurso for radical, como por vezes tende a ser, entramos num vácuo diletante, num exercício escolástico, numa procura incessante de uma verdade histórica que, no caso concreto, apenas se obtêm por aproximação.
Desde os princípios do século XX que, na Europa, se assistiu ao florescimento de uma corrente interpretativa que preconizava o retorno à sonoridade original da música antiga, baseando-se no uso de instrumentos de época e ao estudo aturado da tratadística dos séculos XVI a XVIII. A primeira gravação da PSSMateus verdadeiramente imbuída deste espírito é a de Nikolaus Harnoncourt, em 1970, com um coro de vozes brancas e masculino, opção seguida nas décadas seguintes por diversos outros maestros, desbravando novas sonoridades, renunciando a uma visão romântica desta música e procurando a simplicidade das linhas, em detrimento dos arcos melódico. Foi uma pedrada no charco, se tivermos em conta a versão de Karl Richter (1958), a de Otto Klemperer (1962), ou mesmo a de Karl Münchiger (1965). Já na década de oitenta, surgem as gravações de Philippe Herreweghe (1985), John Eliot Gardiner (1989) e Gustav Leonhardt (1989), cada um deles num exercício de depuração, mas ao mesmo tempo de compromisso. Renunciam à sonoridade de massas, mas procuram
ensembles de sonoridade quase etérea, numa plasticidade pouco genuína, à procura da perfeição. Ao longo da década de noventa, e mesmo nos meados do século XXI, assistimos ao extremar de posições. Se, por um lado, Paul MacCreesh (2002) apresenta uma versão minimalista, um músico por parte, Frans Brüggen (1996) e, novamente, Philippe Herreweghe (1998) e Harnoncourt (2001), surgem com abordagens de compromisso entre o provável e o contemporâneo, ou seja, a simplicidade da linha barroca, associada à qualidade inexcedível de
ensembles musicais postos ao serviço de uma música de excepção. E aqui, colocamos uma questão: viver para a música, ou viver da música? Fazer da música o nosso espelho mágico, em que nos demoramos em horas infinitas de auto-bajulação, ou procurar na música um sentido para a vida, prestando-lhe um serviço?
Obviamente que todas as versões atrás mencionadas são válidas, até porque, em fim de contas, o que realmente importa é a música de Bach. Na hora de criticarmos um concerto, uma gravação, o que nos impele é um gosto, uma opção estética, mas por vezes o crítico tende a espelhar no objecto em questão a sua própria concepção da obra. Nesse momento, do nosso ponto de vista, deixa de ser crítico e passa a ser detractor ou bajulador. O crítico musical é aquele que, na posse de uma instrução sólida, no conhecimento profundo das correntes estéticas, define o que de bom ou de mau se fez à música, ou seja, o crítico está ao serviço da música e não ao serviço da sua concepção de música. Posto isto, passemos aos factos em concreto.
O concerto de Sábado contou com dois coros de c.30 pessoas e duas orquestras em número semelhante de figuras. A este efectivo musical juntou-se um coro misto de vozes brancas, o Coro Infantil da Academia de Santa Cecília. Os coros estavam dispostos nas extremidades laterais do palco, com o coro de crianças ao meio. Já a dupla orquestra, separada apenas pelo órgão [sendo que deveriam ter sido dois...], apresentava uma disposição espacial estranha, com os violoncelos à frente, separados dos contrabaixos pelas violas, o que teve a sua influência negativa, quer em diversos contínuos das árias, quer no desconcertante recitativo
Und Siehe da, der Vorhang im Tempel, dando origem a um desfasamento quase inaceitável. Não podemos deixar de fazer um reparo ao número de violinos. Tendo em conta o número de coralistas, 24 violinos é demasiado, mesmo para as texturas impregnadas de dramatismo que o maestro Corboz exigiu aos músicos em palco. Dezasseis violinos teriam sido suficientes, visto que violas eram apenas seis, violoncelos quatro e contrabaixos dois.
No que diz respeito aos recitativos, Corboz optou por fazer os recitativos a seco apenas com órgão. Tal opção, apesar de resultar pobre do ponto de vista sonoro [a norma seria juntar um violoncelo e um contrabaixo], permitiu, por um lado, o contraste máximo com os recitativos de Jesus, acompanhados pelas cordas, valorizando-os, e por outro, abriu as portas à improvisação do organista, Marcelo Giannini, num acompanhamento rico e inventivo. O Evangelista, o tenor Andreas Karasiak, dotado de uma voz rica em harmónicos mas pobre em volume, soube valorizar os
affeti, mas falhou nos momentos de maior tensão. Fazendo uso do falsete, acelarando ou alargando, consoante o texto, preferiu sempre uma emissão morna, sem o
sturm und drang já imanente neste discurso musical. No oposto esteve Christian Immler no papel de Jesus. Jovem cantor, dotado de uma voz nobre, procurou ao longo da sua performance um compromisso entre o claro-escuro, arriscando uma impessoalidade vocal de grande efeito dramático. A sua invocação final
Eli, Eli, foi, no mínimo, comovente.
O soprano Letizia Scherrer mostrou-se à altura do seu papel. Ao longo da PSSMateus apenas intervém pontualmente, e sempre com um texto musical de extrema complexidade. De voz encorpada, mas ao mesmo tempo cristalina, soube impregnar as suas árias de densidade dramática, preferindo expor a poesia de Picander em detrimento da sua voz. Tal humildade é de louvar. O seu ponto alto foi a ária
Aus Liebe will mein Heiland sterben, onde contou com o solo de Sophie Perrier, na flauta, demonstrando sensibilidade ao fraseio musical.
O contratenor Carlos Mena foi, do nosso ponto de vista, a surpresa da noite. De timbre quente, não fora catalão e por isso, mediterrânico, pautou-se por uma interpretação cuidada, dir-se-ia, fina, mau grado o seu tique quase glótico de apanhar as notas. De fôlego impressionante, foi de um lirismo absoluto em
Erbarme dich. Ainda nesta ária, de notar a excelência do fraseio de Maria Balbi, no violino
soli, de sonoridade requintada, e em compromisso evidente entre o instrumento moderno que tinha em mãos e o fraseio barroco requerido pelo texto musical.
O tenor Christoph Einhorn foi, qual trapezista na corda bamba, o sufoco da noite. Quem o ouviu, temeu a cada momento a fífia, apercebendo-se, aos primeiros compassos, da inadequação da sua voz ao papel que se propôs fazer. Tal como na PSSJoão, as árias para tenor são de suma dificuldade, exigindo extensão e flexibilidade vocal. De voz pouco timbrada, o tenor abusou de uma emissão horizontal, parca em harmónicos, cortante, faltando-lhe, para mais, duas notas do registo agudo. Logo no seu primeiro recitativo acompanhado
O Schmerz procurou mostrar o que não tinha, roçando a berraria. Foi com alguma ironia que nos detivemos na sua nota biográfica, onde, segundo o jornal suíço
Der Bund seria “ o Evangelista nato”. Temos as nossas sinceras dúvidas…
O baixo Sebastian Noack mostrou plenamente o que valia. Mais barítono que baixo, detém uma voz com grão, encorpada, de harmónicos sumarentos, que se molda na perfeição a cada palavra. Nos recitativos mudou de timbre consoante a sua personagem, ora Judas, ora Pedro, umas vezes Sumo Pontífice, outras Pilatos, procurando, em cada uma delas, uma identidade própria. A sua expressividade vocal voltou a destacar-se nas árias, podendo o espectador desfrutar plenamente da sua voz. Apesar disso, faltou-lhe nobreza na sua última ária,
Mache dich, para nós latinos, diríamos antes, paixão.
Ainda a propósito das árias, algumas observações que achamos pertinentes: Pedro Ribeiro, no oboé, foi revelador na ária
Ich will bei meinem Jesu, lançando cada frase musical com extrema elegância, e servindo de excelente contraponto ao tenor solista, mau grado as deficiências deste último, das quais fizemos anterior menção; as cordas da Orquestra II foram quase mastodônticas na ária
Gerne will ich mich bequemen, faltando-lhes tacto e sensibilidade musical; no dueto
So ist mein Jesus foi a vez das cordas da Orquestra I mostrarem alguma dificuldade em assumirem o papel de contínuo, numa linha tortuosa e contínua, que parecia não acabar; Maria José Falcão foi eficaz em
Geduld, wenn mich falsche, apesar de um ou outro tique mais romântico no fraseio, em especial no final da ária; nota negativa ao naipe dos I violinos da Orquestra II na ária
Können Tränen, com uma linha atabalhoada, imprecisa e a raiar a desafinação; por fim, nota máxima para Matthias Spaeter, no alaúde, na ária
Komm, süßes Kreuz, o momento mágico da noite.
Chegamos a três pontos sensíveis e sempre envoltos em grande polémica: os corais, os coros e as diversas interjeições corais da turba. No que diz respeito aos Corais da PSSMateus, estes constituem, do nosso ponto de vista, o
equilibrium musical, servindo de elo de ligação entre as várias
dramatis personae, dando uma consistência única à obra, como aliás acontece em grande parte da música sacra de Bach, para além de, obviamente, assumirem o papel de hino congregacional da liturgia protestante. Se, à época de Bach, era suposto que a assembleia de crentes se juntasse na entoação dos corais, pelo que as opiniões se dividem quanto à forma como devem ser interpretados, o Maestro Corboz optou, precisamente, pelo claro-escuro que representam. Mais ao jeito de
tactus, os corais desenrolaram-se cadenciados, de pulsação e dinâmica regular, prestando atenção ao texto neles contido, e procurando estabelecer ambientes. Destacamos os corais
Erkenne mich mein Hüter,
Bin ich gleich von dir e
Wenn ich einmal soll scheiden pelo controle absoluto que o maestro conseguiu dos músicos, e pela forma apurado como o texto foi declamado pelo coro.
As diversas interjeições corais da turba foram de prestação irregular, levantando-se desde logo a questão da diferença timbrica entre o Coro I e o Coro II. Passagens de grande teatralidade, são uma prova de temperamento vocal para qualquer coro. Estiveram particularmente bem o coro
Herr, bin ich’s,
Weisage uns, Christe e
Andern hat er geholfen.
Deixámos propositadamente os coros para o fim, por neles estarem contidos um resumo da prestação do coro e da orquestra. O primeiro coro,
Kommt, ihr Töchter, teve uma introdução instrumental pesada, sem qualquer tipo de tensão crescente, especialmente nas cordas. Apesar das interjeições exclamativas do Coro II, de grande efeito, fica a questão da pertinência deste se juntar ao Coro I logo de início. Por alguma razão Bach apenas os juntou na terceira secção deste número coral. Curiosa a opção de Corboz em fazer dobrar a parte de soprano ripieno, o coral
O Lamm Gottes, a cargo do coro infantil, com uma trompa. Apesar de não estar mencionado na partitura, faz algum sentido se atendermos ao facto de Bach, por norma, dobrar os corais em texturas musicais semelhantes, precisamente com uma trompa. De qualquer forma, esta variação em nada alterou o sentido musical deste andamento. Em
Sind Blitze, sind Donner, o crescendo telúrico que o coro nos ofereceu foi deveras impressionante, um dos momentos mais tensos em dramatismo da noite. Já o número final da I Parte,
O Mensch bewein’ , foi, do nosso ponto de vista, demasiado rápido, trazendo dificuldades acrescidas ao já difícil fraseio dos instrumentos, particularmente os sopros. Questionável o decrescendo abrupto final, apesar da figuração rítmica assim o sugerir…
O número inicial da II Parte,
Ach nun ist mein Jesus hin, para além do solo correcto de Carlos Mena, contou com uma intervenção coral cheia de vigor, de fraseado elegante, mas, novamente, com a participação dos dois coros. Teria sido bem mais interessante, e respeitador da partitura original, a opção de fazer este número apenas com o Coro II. A própria linha das vozes roça o madrigalesco, perdendo-se esta
nuance musical por completo. Já o coro final,
Wir setzen uns, foi, apesar do tique romântico que Corboz exigiu aos músicos, profundamente dramático, numa mistura, dir-se-ia, de desespero e glória. A orquestra manteve-se com alguma dificuldade no fraseio, mas o coro mostrou-se em pleno das suas características, de timbre apurado e controle absoluto das dinâmicas.
Ficou-nos a ideia de que Michel Corboz preocupou-se em dar-nos uma visão dramática da obra, raiando o que poderíamos denominar de ópera litúrgica, em vez de uma mera interpretação, estilisticamente, dita correcta.
Por fim colocamos uma questão: se algum público já sabe que vai ao encontro de um Bach muito pouco
a la “Música Antiga”, porque é que teima em ir a estes concertos? Simplesmente para depois poder dizer mal?